Tuesday, March 06, 2018

A propósito do abraço



No dicionário Priberam da Língua Portuguesa, a palavra “abraço” é definida da seguinte forma: “Acto de abraçar, de apertar entre os braços, geralmente em demonstração de amor, gratidão, carinho, amizade, etc”.

Durante toda a minha vida usei e abusei de dicionários. Não sei porquê, mas na minha sempre ávida sede de saber, os dicionários têm sido fiéis amigos e raramente me têm desiludido. Depois de viver a história que em seguida relato, cheguei a casa e fui procurar uma palavra sobre a qual nunca me tinha debruçado, talvez por ser uma palavra simples e de fácil compreensão. Que enganado estava! A palavra “abraço” encerra em si tantos significados quanto as sensações que a sua efectivação pode provocar, ou certamente mais. A história que se segue é verídica e qualquer semelhança com a realidade não é, de todo, pura coincidência.


No outro dia fui ao café com o meu filho. Não o fazemos muitas vezes, mas de vez em quando lá lhe pergunto se ele quer e a resposta é, normalmente, afirmativa. Fomos de mão dada, como é costume, pois a estrada é perigosa e o pouco passeio que existe está cheio de carros, ou de cocó. Não me importo. Vou de mãos dadas com o meu filho. Chegados ao café, a primeira coisa que o meu filho faz é desatar a correr à procura da senhora do café, cuja cara lhe é já familiar, e a quem ele gosta muito de ir mostrar as sapatilhas novas. Estas (as sapatilhas), de novas já não têm grande coisa, mas não faz mal. É sempre engraçado vê-lo estender a pernoca e pedir à senhora do café que olhe para as sapatilhas. A senhora do café entra na brincadeira e pergunta sempre, com ar de espanto: São novas? Ao que o meu filho responde que sim, que foi o papá que comprou (mentira, foi a mamã, mas o papá não se importa com mentirinhas inocentes). Depois de mostradas as sapatilhas-não-tão-novas-assim-mas-não-faz-mal, o meu filho repara sempre na vitrina cheia de bonecos, daqueles que saem nos ovos de chocolate, sem nunca se esquecer de me chamar à atenção para o Super Mário que, lá ao fundo, espreita com a cabeça de fora de um cano de esgoto verde-alface. O café está pronto. Vamos para a esplanada para ele brincar enquanto eu beberico o café e ensaio uns sinais de fumo. Depois da brincadeira e da cafeína, pergunto-lhe se quer ir para casa e ele, mais uma vez, responde afirmativamente. Mas desta vez passou-se algo diferente. Ao entrarmos novamente no café, o meu filho saca de um “olá” gigantesco e desata a correr na direcção da senhora do café. Devo admitir que por uma fracção de segundo fiquei assustado, não sabendo ao certo como terminaria tamanha debandada. A senhora do café levantou-se e, de braços abertos, acolheu a investida do meu filho. Agora, o que tem esta situação de especial ou de relevante? Nada mais simples. Sou frequentador assíduo daquele café há já alguns anos e de todas as vezes que lá fui tomar a minha bica reparei que a senhora do café não sorri. Sempre foi simpática e prestável, mas sorrir parecia ser uma missão impossível. Ao ser abraçada pelo meu filho, esboçou um sorriso de tal forma sincero que me emocionou e me fez sorrir também. Além disso, também me deu que pensar: como é que uma coisa tão simples pode trazer tanta alegria, ainda que momentânea, à vida de uma pessoa? Eu não sou coscuvilheiro e nem sequer faço ideia do motivo da falta de alegria constante no semblante da senhora do café. Desconfio que terá a ver com o facto de ser imigrante, mas não sei. Seja como for, com um simples gesto, o meu filho cumpriu todas as definições que o dicionário tem para aquela palavra e, ainda que apenas por breves momentos, a senhora do café foi apertada pelos braços pequeninos do meu filho, numa demonstração de amor pelo próximo, num agradecimento por estar sempre pronta a demonstrar interesse pelas sapatilhas-não-tão-novas-assim-mas-não-faz-mal, num gesto de genuíno carinho que, certamente, fez despoletar uma nova amizade e, provavelmente, alguns eteceteras.

Um abraço.

Tuesday, July 04, 2017

Afinal não é uma saga

Querido Pê,

Apesar de não me apetecer expandir-me muito mais sobre este assunto, não podia deixar de escrever qualquer coisa, em jeito de despedida. Sim, despedida! Não sei que bicho te mordeu, ou se recebeste a visita de alguém, aquele tipo de pessoas que “tratam das coisas”, como vemos nos filmes. Desde já te garanto que eu nada tive a ver com o assunto, mas já não posso falar pelos meus milhares de leitores (sim, milhares... a maioria são tímidos), que se mostraram, aliás como eu, indignados aquando do primeiro texto que escrevi sobre este assunto. Catorze valores foi a nota que decidiste dar-me como avaliação do exame do passado dia vinte e sete. Já falei sobre o conteúdo do mesmo e sobre a minha incerteza em relação àquilo que escrevi, portanto não me vou demorar. Devo admitir, no entanto, que não esperava uma nota tão decente! Catorze é aquela nota que nos deixa entre a excelência e a medianidade. Neste caso concreto, creio que a que mais se coaduna com o meu trabalho será a primeira, mas...
Entretanto, não podia despedir-me de ti sem manifestar a minha preocupação para com as gerações de jovens que tens e terás como alunos. Ainda que as gerações mais novas estejam (mal) habituadas a que lhes façam a papinha toda (perdoem-me, leitores mais petizes, mas é verdade), estou em crer que algo devia mudar. Ou se calhar tudo. Não estou a par do método de ensino das Humanidades nas escolas secundárias de Portugal, mas quero acreditar que, à semelhança do que os meus professores fizeram comigo, é fomentado o pensamento individual, o saber fazer por si próprio, o ter opinião. A meu ver, os alunos “respondões” são os melhores alunos nestas áreas, mas posso estar enganado. O problema é que, como pude constatar neste meu regresso ao mundo académico, a opinião própria é relegada, senão mesmo aniquilada, por uma espécie de imposição sistémica, de uma falta de paciência generalizada e bem patente nos docentes, que, ao verem a falta de armas de que os alunos dispõem, se deixam levar e, ao invés de tentarem contrariar o fluxo do rio, nele embarcam e se deixam levar, deixando o problema ir, literalmente, por água abaixo. Recordo-me de uma aula em que falaste, precisamente, sobre o futuro das Humanidades, que não se prevê nada risonho. Argumentaste que, daqui por vinte anos, vão ser necessários professores para as universidades. Não sei se de propósito, mas nunca falaste do porquê, que é muito simples e se resume numa palavra: Cátedra. É curioso também verificar que, passados quase vinte anos da minha primeira matrícula na Universidade do Algarve, o corpo docente da Faculdade de Letras se mantenha absolutamente e inexoravelmente inalterado. Nem um nomezinho diferente, nem uma nesga de juventude, de novas ideias, novas perspectivas. Assim, não estranhei nada que a evolução da supracitada - tanto em termos de investigação como de docência per se – tenha sido nula. Tirando algumas conferências sempre com os mesmos protagonistas, nada se passa naquela faculdade. A sensação que me dá é que a faculdade se tornou numa espécie de família que se reúne de vez em quando para celebrar a sua própria existência, quando o que devia acontecer, na minha opinião, era uma expansão dessa família, com novos “filhos” que trouxessem algo de novo e reinventassem o processo de ensino/aprendizagem, sendo que o futuro se adivinharia bem mais risonho, tanto para alunos, como para professores. E tudo isto tem um motivo muito simples, que se explica através da resposta à seguinte pergunta: a universidade vive do quê? Dos alunos! Dos alunos pagantes de propinas, entenda-se, mas não obstante somos nós que compomos o ramalhete. O problema desta universidade é mesmo este (e não sei como é nas outras): não se valoriza o aluno. Tanto jovem com valor que por lá anda a estudar, para no fim de três anos não ter outra hipótese senão ir para outro lado, ou trabalhar numa área que nada tem a ver com o curso. Mas isso é outra conversa. Entretanto, sei de fonte segura que, para o ano, o curso de Literatura terá a módica quantia de seis alunos. Seis! Há dezoito anos, quando saí de casa para estudar, éramos cinquenta e três. E sim, podes argumentar que os cursos de letras têm cada vez menos alunos por causa das saídas profissionais, mas se isso fosse verdade, os únicos cursos com muita gente seriam cursos nas áreas da informática. Não é isso que vejo todos os dias, quando vou para a universidade. O que vejo é uma faculdade que definha lentamente, engasgada no seu próprio orgulho, e as outras faculdades que, pelo menos “lá fora”, vão tendo algum reconhecimento (nem que seja a Faculdade de Ciências e Tecnologia, que muito bom trabalho tem vindo a desenvolver).
Temo ter-me desviado um pouco do propósito desta despedida, mas assim o ditam as deambulações do pensamento. Um destes dias vou fazer uma coisa que já tinha pensado, ainda que não me pareça que fará algum tipo de diferença. Vou pegar no meu “Clube dos Poetas Mortos” e vou depositá-lo no teu cacifo, sem remetente nem mensagem. Deixo ao teu critério, ao contrário do que tu fizeste comigo, a interpretação do filme e das lições que dele podes tirar. Se alguma coisa boa daí vier, tanto melhor. Caso contrário, está para além do meu poder mudar seja o que for.
No meio disto tudo, só uma coisa é certa: Nunca mais vou ter de ser teu aluno.

Adeus.